A arte de dizer o óbvio
Fugir de um cliché, às vezes, é não só indispensável como desnecessário.
Descrito como diário, diariamente descrito. Contraditório nos objetivos, objetivamente contraditório. Pegue uma cadeira e sente-se.
Desdobro-me em bemóis: quero ser lá! Quero subir o tom e ir mais alto. Depois, só por gosto, deflagro tal destoamento que me faça cair um milhão de notas. Não me venço, sou ré para não ter que viver de flutuações passadas. Sinto só os timbres que hão-de vir.
Adoro o torpor da sobriedade! Ah, o torpor!
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Acordou um dia como um sábio; um jovem sábio do ocidente. Entendeu, de súbito, toda angústia humana e soube trabalhar isso tão bem que adormeceu de vez toda amargura que o habitava antes. Vivia cercado de luz agora, embora não soubesse dizer se a luz vinha da clarividência ou a clarividência da luz. Quis perguntar. E, de fato, o fez. Sábio como era, soube reconhecer suas limitações e se pos humilde. Era sábio agora não mais por saber das coisas, mas justamente por não saber. E não ousou temer perguntar, ainda que, certamente, não quisesse uma resposta. Respostas bem dadas, cessam perguntas e calam inquietações. Ora se não há nada mais nocivo!
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Atiraram-me com força, muita força e pude, então, viajar longe longe. Longe subo os morros, perdendo o chão de vista. Levei embora comigo, embora, a carta que em mim fora escrita por um menino que muito te quer bem. Se não chega a carta, pelo menos o beijo que lhe manda.
Com carinho,
o aviãozinho de papel.
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Queria uma meia colorida! Uma meia todinha colorida pra fazer de sua meia calçado meu. Uma meia que seja assim: uma meia inteirinha nossa.
Por entre os arbustos, observam-me; ficam a espreita. Olhos aos pares se misturam à vegetação. Finjo desconhecimento e fico desconfortável. Mas não sinto culpa. Desconfio e não mais disfarço:
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Anoitece e então começa meu dia. Meu lamento morno subindo ainda quente a garganta adormecida. Espreguiço-me tentando afastar de mim o véu brumoso que pesa as pálpebras e fecha os olhos. Conquisto minha independência quase que num cruzar de espadas e, desvalido, luto. Luto desvalido. Os olhares são fortes e conseguem ainda me arder a pele. Meus olhos ofuscados buscam o breu. A brisa acaricia e convida meus ouvidos ao passeio. Sinto-me rendido e, assim, deixo-me levar. Os passos se desencontram em perfeita harmonia e posso, então, ouvir música. Melodiosa, a terra sobe os dedos e entra na valsa. Fico sinestésico. O toque do luar é suave no tapa. O aroma do campo me excita. Sinto arrepios, e cada vez mais profundos. Ouço ressoar o grito que tento dar. Mas sai calado e a alma aflige a carne. Debato-me entre agonias e gozos. Vem a dor e faz companhia. Desfaço-me em contorções pornográficas, mas cuspo; é sujo. Sinto-me sujo.